Quarentena Feelings 4 — Carta aberta aos meus algozes

Marcela Mazetto
3 min readJul 5, 2020

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Todos enfrentamos relacionamentos abusivos em nossa vida. Eu tive dois: um que veio de berço e outro numa dessas noites que a gente acha que a habilidade da cabeça debaixo condiz com a da cabeça de cima.

Lamento por todos os que passaram por isso (em todos os gêneros possíveis), todos os que passam e todas os que passarão.

Mas, como uma boa otimista, busco o lado bom dos acontecimentos, tirando as grandes lições alcançáveis com uma boa cachaça, com uma noite de sexo suado, com minha terapeuta e com amigos valiosos que redescobri e descobri na vida.

Agradeço por tudo que passei.

Pela capacidade de me encontrar no silêncio de uma quarentena, de ter cada vez mais ter orgulho da minha mudança, da minha capacidade de resiliência (destaque para meu ódio pelo clichê associado a esta palavra), pelo nascimento da minha liberdade sexual e pelo direito de dizer não.

Sinto-me viva, feliz pelo aprofundamento do feminismo em cada célula do meu ser, pela democratização do meu corpo, das minhas opiniões, decisões e como decido por mim mesma, seja sobre minha roupa, meu parceiro(a) sexual, a música do meu Spotify e tudo que está ao meu alcance. Se ter liberdade, ser dona de todas nossas escolhas e decidir com ou sem emoção nos torna putas, me considero a vagabunda master de todas com o maior sorriso no rosto. Peço perdão a todas as mulheres que já julguei enquanto não compreendia o tamanho, densidade e profundidade do ser feminino.

Rio ao receber um e-mail de alguém que já não faz mais parte do meu ser, dessas que a gente demora pra lembrar a origem e até mesmo o rosto. Me surpreende a capacidade do ser humano de eliminar memórias ruins e que não valem a pena. Agradeço pela segunda vez.

Reflito sobre como a fragilidade masculina transforma seres humanos em machos escrotos, desses que usam da força física, da desculpa de que “estava muito bêbado” ou “fiz isso porque eu te amo demais”. Vejo mais um caso desses no portal de fofocas que acompanho diariamente, agradeço por ter saído viva enquanto era tempo, espero que muitas outras mulheres tenham essa chance também.

Li em algum lugar que a cada sete anos nosso corpo tem a capacidade de regeneração completa — espero pelos meus 28 anos pela possibilidade de nenhuma parte de mim ter ainda alguma coligação com pessoas que tive o desprazer de encontrar. Agradeço também pela vida ter me dado a chance de encontrar muitos outros romances passageiros com pessoas incríveis no meio do caminho, desses que mesmo com a incapacidade do envolvimento, nos lembram o quanto é bom amar e ser amado, da forma mais fácil, de corpo e alma, com a devoção e entrega do vento ao fogo, da água à terra, do bem para o bem.

Me desvincilho da obrigatoriedade dos laços familiares, deixo você ir, em paz e com carinho pelas lembranças positivas. Todos escolhemos caminhos em nossa vida, confesso que sinto por você não ter me escolhido. Precisamos desmistificar a relação e obrigação entre mães e filhas, faço essa observação pra mim mesma. Nem sempre os relacionamentos abusivos estão atrelados as nossas escolhas “amorosas”, muitas vezes, eles já vem com defeito de fábrica.

Desejo aos meus algozes que um dia encontrem o amor em sua forma genuína, dessas que a gente fica feliz pela conquista dos demais, sorri em cada traço desajeitado, valoriza cada escolha que trouxe o outro até nós, sente orgulho e tesão em ter alguém ao nosso lado. Sem poréns e sem nenhuma conjunção adversativa.

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Marcela Mazetto

Jornalista, feminista, emputecida e exercendo a expressão no limite (ou não).